Estamos vivendo um início de ano de muitas perdas: as famílias de Brumadinho, as chuvas no Rio de Janeiro, os meninos do Flamengo, o jornalista Ricardo Boechat, entre outras. É impossível não sofrermos juntos com essas famílias! Como dói pensar em cada mãe, em cada pai, em cada filho, em cada parente que perdeu seu ente querido.

E em meio a tanto sofrimento, não posso deixar de falar sobre o luto. Mas você já parou para pensar como a sociedade lida com o luto? Diante da perda de um filho, todas as atenções se voltam para a mãe. E o pai? Ele também não perdeu o filho; não está sofrendo?

Hoje quero falar sobre o luto paterno! Entrevistei o Daniel Carvalho, pai da Joana, que contou um pouco da sua história, do seu luto e como ele conseguiu transformar um momento de muita tristeza em um grupo de apoio a outros homens que também estão sofrendo.

Daniel Carvalho, pai da Joana

CANAL INFANTIL – COMO VOCÊ SE TORNOU PAI?

DANIEL CARVALHO – Joana nasceu muito antes de ser concebida na barriga da mãe. Antes, foi concebida como um projeto de vida. De alguma forma eu sempre soube que seria pai de uma menina. Quando minha esposa ficou grávida foi a certeza do que sempre pensamos como idealização. Durante toda a gestação, eu a acompanhei como sempre me foi dito que um verdadeiro futuro pai deveria ser. Fui a todas as ultrassonografias, acompanhei todas as consultas. Assim, me achei cumprindo meu dever. No dia do parto, fomos para o hospital de uma forma muito tranquila; enquanto as contrações de minha esposa só aumentavam a ansiedade (a dela e a minha). Tudo normal, conforme o script. Mas depois de seis horas de parto, notei um olhar atravessado e silencioso entre duas médicas. Algo estava errado. Joana nasceu mole, azul, com parada cardiorrespiratória. Haviam me dito que eu me tornaria pai após ouvir o choro da minha filha ao nascer. Não houve choro. Não dela. Houve correria, muita gente no quarto, desespero. Quando vi estava no CTI com a médica responsável me explicando o inexplicável. Eu nem lembro bem desse momento. Eu só consegui reter o peso emocional de ter que lidar com o imponderável. Foram seis dias de CTI, seis dias de uma montanha russa emocional que variava entre uma esperança inquietante e um desespero interminável. Em seis dias, depois de muito ter lutado pela vida, ela morreu. Nestes seis dias, eu aprendi o que era ser pai. Nestes seis dias, eu me tornei pai, e descobri que nunca deixaria de ser. A paternidade (e a maternidade também) é uma condição irrevogável. Nem a morte acaba com ela. Porque é o amor que funda um pai. E nem a morte acaba com esse amor.

CANAL INFANTIL – APÓS O FALECIMENTO DA JOANA, VOCÊ PODE SENTIR EXATAMENTE COMO A SOCIEDADE LIDA COM AS PERDAS. OS OLHOS E A ATENÇÃO SE VOLTAM PARA A MÃE. COMO É ISSO?

DANIEL CARVALHO – O comum, o normalizado socialmente em uma situação como esta (a perda gestacional e neonatal) é a que protagoniza o papel da mulher, da mãe. Ela que gestou o bebê em sua barriga, ela que se fundiu com ele como se fossem um só. Aos olhos do mundo, é ela quem perdeu porque ela é quem guardava uma vida dentro. O sofrimento que é visto é o dela. Não há nada de errado nisto porque o sofrimento da mãe é realmente inimaginável. O que há de errado é a invisibilidade em relação à dor do pai. Não se enxerga e nem se legitima a dor paterna. A ele é imposta uma cartilha que lhe diz a sua principal função: cuidar da mãe, a pessoa que perdeu um(a) filho(a). Se não se tem, não se perde. É assim que, ao que me parece, a sociedade enxerga o homem. Aos olhos do mundo, ele não chegou a ser pai, não chegou a ter um filho. Assim, seu sofrimento é negado, deslegitimado, invisibilizado. O mais cruel é que também é muito comum o próprio homem internalizar esta maneira de se ver. Muitos homens se colocam o fardo de ser o suporte inquebrantável da mulher. É comum pais dizerem, quando procuram ajuda terapêutica, “eu estou aqui por ela”, porque o que ele mais ouve é “você precisa ser forte por ela”. Tudo isto é, a meu ver, fundado em uma visão social dos papéis masculino e feminino que se ancora em um machismo estrutural. São papeis definidos por uma sociedade que quer dizer qual é a maneira correta de ser mulher e de ser homem e, consequentemente, de ser mãe e de ser pai. Mesmo que isto custe a própria maternidade e paternidade em si. No caso do luto pela perda, para o homem, é a negação de sua paternidade. É isso que para mim é inadmissível. A morte pode levar um filho, mas não leva o amor que um pai ou uma mãe sentem por ele.

Comigo tudo aconteceu, posso dizer, de uma forma um tanto privilegiada. Como um homem branco e hétero, minha invisibilidade é bem menor do que no caso de um pai negro ou um pai gay que perde seu/sua filho(a), por exemplo. Além disso, o fato de pertencer a uma classe média e ter um emprego público me proporcionou a possibilidade de tirar uma licença médica para dar atenção a mim mesmo após a perda, ainda que esta não fosse uma questão tão óbvia para mim no momento. Mas meu maior privilégio se deu por meio de minha esposa, que ainda no hospital, quando Joana estava no CTI, falava com todos que olhassem e cuidassem de mim. Isso, creio eu, despertou nas pessoas próximas uma atenção para o meu sofrimento como pai. E acabou criando um ambiente favorável para que eu despertasse para as questões dentro de mim e para meu luto. Ainda assim, é recorrente eu conviver com momentos e com questões comuns a todos os pais como eu: sou cobrado para ser forte, sou cobrado a cuidar da minha esposa, sou cobrado a não demonstrar, de forma alguma, as minha fraquezas, sou cobrado, enfim, a cumprir as funções de uma masculinidade hegemônica: ser o provedor, expressar o mínimo de emoções (a não ser raiva e agressividade, estas são permitidas, e muitas vezes incentivadas), sou cobrado a ser quem não sou porque para o mundo eu me tornei algo inaceitável: um pai na morte.

CANAL INFANTIL – QUAL A IMPORTÂNCIA DE MOSTRAR AO MUNDO QUE O LUTO PATERNO EXISTE E QUE É NECESSÁRIO FALAR SOBRE ELE?

DANIEL CARVALHO – Esta cobrança de que falo vem das pessoas, não porque são más ou porque querem piorar uma situação já muito extrema. As pessoas o fazem porque acreditam estar fazendo o melhor para aquele pai enlutado. E assim o fazem porque assim foram ensinadas. É assim que vemos o homem em nossa sociedade: um muro que suporta o que for porque seu principal ideal é a força. Um muro que deve resistir a tudo. O que não discutimos é que um muro dado a intempéries se desgasta, até que um dia rui e se desfaz. Quero dizer com isso que o homem sofre. Esta afirmação é vista de forma dúbia: para alguns pode parecer óbvia, mas o que chamo a atenção é que por baixo da obviedade há um labirinto ainda inexplorado de questões que nem a sociedade olha e nem mesmo o próprio homem; para outros, pode parecer como uma competição de dores, como se ao afirmar o sofrimento do homem isso diminuísse o sofrimento, por exemplo, da mulher. O sofrimento do homem em uma sociedade que não o valida e legitima de forma empática gera uma série de repercussões que, inclusive, rebatem e repercutem na mulher. É, portanto, fundamental se olhar para o sofrimento do homem como um caminho de se questionar e se debater as masculinidades e as formas como permitimos o homem de se expressar e de se viver como tal. Só assim, acredito, acolheremos a dor masculina e construiremos uma sociedade melhor pra todos e todas. Só assim poderemos ter um mundo que permita o homem ser o homem que ele é, e não o homem que querem que ele seja. Em sua vida e em seu luto.

CANAL INFANTIL – DIANTE DE TANTA DOR, VOCÊ AINDA CONSEGUIU ENCONTRAR FORÇAS E CRIAR UM GRUPO PARA HOMENS ENLUTADOS. COMO SURGIU ESSA IDEIA?

DANIEL CARVALHO – A ideia veio da necessidade de se ter um espaço para se falar abertamente e de forma acolhedora, sem julgamentos, e entre homens, sobre as principais questões do luto masculino. O homem não discute, de uma maneira geral, o seu sofrimento. É ensinado a reprimir quase que todo e qualquer tipo de emoção. Só tem permissão social para se expressar através de agressividade, portadora da raiva, que muitas vezes desemboca em atos de violência. É uma questão social até. Homens são os maiores agressores e violentadores no país. As taxas de feminicídio e violência contra a mulher são alarmantes no Brasil. Por outro lado, os homens são os que mais sofrem de alcoolismo e todos os seus problemas associados, e são os que mais se suicidam. A meu ver, uma das questões que colaboram para isso tudo é o fato de o homem não ser ensinado a lidar com suas questões. Sendo assim, o luto se torna um momento e uma oportunidade de se discutir esta masculinidade que é extremamente tóxica também para o homem. Empoderar esse homem de um capital emocional para lidar com, muitas vezes, o pior momento de sua vida. Ensinar a ele uma forma saudável de ser ele mesmo, em uma vida que não será mais a mesma.

CANAL INFANTIL – É IMPORTANTE QUE O PAI RECEBA APOIO DE OUTROS PAIS PARA CONSEGUIR SUPERAR O LUTO?

DANIEL CARVALHO – É importante não só pelo apoio natural que a própria empatia entre todos traz, mas também porque a validação de seu luto é uma das principais questões para esse homem. Ter sua dor vista, reconhecida e amparada, é talvez a principal questão num momento como este. É através da afetividade que se pode construir um novo paradigma na vida destes homens. Para muitos de nós, qualquer demonstração afetiva entre homens é impensável. Não abraçamos, não beijamos, não demonstramos carinho e afeto uns pelos outros (de novo, a não ser disfarçados como agressividade ou raiva). Assim, não nos damos suporte quando precisamos, e acabamos tentando isso das formas mais erradas possíveis. Reunir homens que passam por experiências similares no luto é algo fundamental, urgente e, ao que parece, inédito no país.

Mas, apesar disso tudo, eu diria que mais importante que receber apoio de seus pares, os homens que vivem a experiência de uma perda de um ente querido, algo tão desmobilizador, precisam, acima de tudo, de apoio de seu entorno. De sua esposa ou esposo, de seus familiares, seus amigos e amigas, seus filhos… Este é um projeto que busca, para além do homem que chega até ele, abrir o debate sobre o luto masculino. Fazer a sociedade entender o motivo e como o homem sofre num mundo tão machista como o nosso. Apoio de todos e todas é essencial.

CANAL INFANTIL – QUAL A MENSAGEM VOCÊ DEIXA PARA OS PAIS QUE PERDERAM FILHOS E ESTÃO VIVENDO ESSA DOR?

DANIEL CARVALHO – Logo após eu ter perdido a Joana, ainda muito mobilizado com tudo, chegou a minha mão o livro de Viktor Frankl, Em busca de Sentido. Ele conta sua experiência no campo de concentração de Auschwitz e como lidou com tudo após sair de lá e ter descoberto ter perdido todas as pessoas de sua família. Quando ele menciona a forma como lidou com a morte de sua esposa, ele se lembra de uma frase que leu nas escrituras bíblicas: “o amor é tão forte quanto a morte”. Pra mim aquilo foi o ponto de virada, quando entendi que o luto é sofrimento, mas acima de tudo amor. Que a morte pode levar a vida de minha filha, mas nunca levará sua existência, que é sustentada pelo amor imenso que sinto por ela. Amor de pai não morre.

Portanto, se posso deixar uma mensagem direta para este pai que pode estar lendo esta entrevista: você é pai. Eu o vejo. Eu vejo o seu amor e vejo seu sofrimento. O amor pelo seu filho ou filha é o caminho, pai. Porque se tem algo que aprendi é o quanto esta frase está errada. Porque o amor é muito mais forte do que a morte. Muito mais.

ENCONTRO DO GRUPO

E para os pais que precisam de apoio, o grupo criado pelo Daniel terá início no dia 27 de março, em Copacabana, Rio de Janeiro. “Serão rodas de conversas quinzenais e gratuitas, exclusivas para homens enlutados por qualquer tipo de perda (filho/a, irmão/ã, amigo/a, pai/mãe, esposo/a etc.). Queremos com isso criar um espaço seguro e acolhedor, onde os homens possam falar abertamente sobre o que desejarem. O projeto é vinculado a Elisabeth Kübler-Ross Foundation Brasil e terá a supervisão deles. Para participar, o interessado deve enviar um e-mail para o lutodohomem@gmail.com com seu NOME, sua IDADE, sua PROFISSÃO e uma BREVE DESCRIÇÃO de sua história. Também pode acompanhar as informações do projeto no site http://somosapoioaoluto.com.br/luto-do-homem/ ou através do perfil de Instagram @lutodohomem”, explica Daniel.

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