Em qualquer lugar do mundo, crianças são apenas crianças! Todas com seus sonhos, suas brincadeiras, inocentes… Sem preconceito, sem maldade… Porém, infelizmente, se observarmos ao redor do mundo, existe sim muita diferença entre as crianças: umas têm demais, outras de menos; umas são amadas demais, outras de menos; umas têm comida de mais, outras quase nada! É muito triste quando constatamos que o mundo é muito desigual!

Quantas vezes acordamos e reclamamos da vida? Reclamamos por ter que arrumar a casa, mas temos uma casa para morar; reclamamos por ter que levar os filhos na escola, mas eles têm onde estudar; reclamamos por ter que fazer supermercado, mas temos o que comer; reclamamos por ter que sair para trabalhar, mas temos de onde tirar o sustento da nossa família. Será que não estamos sendo ingratos? Não deveríamos agradecer mais?

Se olharmos para o nosso lado, teremos a certeza de que nossa vida é maravilhosa e que não temos problema algum. Trago hoje para vocês um relato emocionante da Letícia Guimarães Machado, Terapeuta Ocupacional, especialista em Saúde da Criança, Mestre em Ciências da Reabilitação e consultora em Desenvolvimento Infantil. Letícia viajou para Moçambique, junto com a Fraternidade sem Fronteiras, e fez um relato especial para o blog Canal Infantil mostrando que a infância, mesmo com sofrimento, também tem sorrisos em qualquer lugar do mundo!

OS CONTRASTES DA INFÂNCIA MOÇAMBICANA

Por Letícia Guimarães Machado

Quando pensamos no continente africano, logo vem no nosso pensamento a miséria, a seca, a fome, etc. E os sentimentos de compaixão, tristeza, angústia também são comuns.

Em dezembro, fui para uma caravana da Fraternidade sem Fronteiras (FSF) para Moçambique que tem por objetivo que os padrinhos da fraternidade vivenciem e conheçam os projetos, as ações, os centros de acolhimento que atendem a população local. Fui apenas como Letícia que tinha o sonho de conhecer o continente africano, mas inevitavelmente a terapeuta ocupacional que estuda desenvolvimento infantil há alguns anos, apareceu em vários momentos.

Quando chegamos na aldeia de Muzumuia onde fica o alojamento que ficaríamos, fomos recebidos por crianças dançando e cantando com alegria e sorrisos que são inexplicáveis quanto ao brilho e pureza. A maioria das crianças descalças, sujas, com machucados, roupas rasgadas, mas TODAS cantando e dançando. Foi o primeiro impacto, como aquelas crianças poderiam estar tão alegres e “fortes” para dançar, cantar, sorrir?

E assim foi nas outras 7 aldeias que vistamos nos outros dias, algumas delas com mais de 1200 crianças, das quais boa parte é órfã. Sim, existem muitas crianças órfãs porque geralmente os homens vão para África do Sul tentar melhores condições de trabalho e não voltam, e as mulheres vivem cerca de 40-50 e morrem por complicações do vírus HIV+. Essas crianças ficam aos cuidados do irmão mais velho e de vizinhos quando possível.

Como foi uma experiência extremamente rica, certamente daria um livro escrever cada experiência que vivi. Então resolvi dividir por partes, com o foco na infância, mas as vivências vão muito além e quem se interessar pode entrar no site da fraternidade e conhecer os projetos e tudo que temos feito por toda a população: www.fraternidadesemfronteiras.org.br

Quero lembrar que nada do que escrever aqui é uma comparação com as crianças brasileiras, muito menos uma crítica a qualquer uma das culturas. São continentes muito distantes com costumes e oportunidades muito diferentes. Será apenas um relato rico e emocionado de quem viu e viveu uma experiência com crianças incríveis.

Gestação e parto: Até pouco tempo, a maior parte das mulheres não sabia que a gestação era fruto da relação sexual, existe uma crença local que a gestação é por vontade divina (não que não seja) apenas. O uso de preservativo não é proibido lá, mas é de difícil acesso e bate de frente com a cultura da procriação divina. Isso daria anos de discussão. Não existe ultrassom, ou outros exames para saber se está tudo bem com o bebê e muito menos o sexo. É sempre uma surpresa e alguns acreditam em superstições para saber o sexo. Quanto ao parto, são feitos nas aldeias mesmo, o cordão umbilical é cortado com pedra e o umbigo não recebe o tratamento esperado e por isso quase 100% das crianças tem hérnia na umbilical.

Amamentação: Existe uma cultura muito forte de amamentação lá, não existe idade estabelecida para interromper. Porém, quando o segundo filho vem e precisa amamentar, é comum observar a desnutrição do primeiro filho pela interrupção da amamentação que era sua principal fonte de alimentação. Os bebês são carregados em uma espécie de “canguru” com um tecido chamado capulana e desde muito cedo adquirem a capacidade de buscar o seio sozinhos.

Alimentação: As crianças atendidas pelos centros de acolhimento da FSF recebem diariamente uma refeição, no horário do almoço, de arroz, feijão e as vezes frango. Antes dos centros da FSF, não existia NENHUMA refeição garantida, apenas o que é possível conseguir nas aldeias: frutas, legumes e verduras quando o clima ajuda. Lá é muito seco e quente e o solo não contribui muito para plantação. Vi algumas plantação de milho completamente queimadas pelo sol e perdidas. É comum ver pessoas se alimentando de bichos e insetos, chegamos a ouvir relatos de pessoas de caravanas anteriores de presenciarem famílias se alimentando de ratos secos no sol.

Voltando a refeição servida nas aldeias, nós os caravaneiros servimos a cada uma das crianças um prato de comida que era organizado da seguinte forma: as mulheres da aldeia preparam a refeição, e vão colocando nos pratos que nós colocamos em tampas que utilizamos como bandejas e levamos cerca de 6 pratos por vez para cada “sala” onde estão aproximadamente 50 crianças ou mais em cada sala aguardando e sabe o que mais me impressionou? A disciplina e auto controle dessas crianças porque a primeira criança que recebia o prato, aguardava até que última da sala recebesse para agradecerem e orarem juntos para só depois comerem. E nesses 10 dias eu não vi uma criança se quer tentar burlar isso e pegar um pouco de comida antes. O censo de coletividade lá é algo impressionante!

Comportamento infantil: Como eu disse o censo de coletividade lá é algo admirável. Desde de muito cedo as crianças aprendem a cuidar dos mais novos, sendo seus irmãos ou não. E respeitam muito os mais velhos. É muito comum ver crianças de 6 anos carregando bebês o dia todo e cuidando dele porque a mãe foi para a Machamba (nome dado a região de plantação) trabalhar. E isso é cultural, não se vê crianças reclamando ou brigando por ter que ficar com o irmão mais novo. Na verdade, eu tive contato com milhares de crianças, e se vi 2 ou 3 chorando foi muito. Não existe a cultura do choro, e não é por uma imposição “Ah, você não pode chorar, tem que ser forte” nada disso. Simplesmente eles não veem sentido no choro. Uma idosa lá nos disse que quando as coisas estão boas, eles cantam e dançam para agradecer e quando estão ruins (fome, dor, qualquer “sofrimento”) eles também cantam e dançam para as coisas melhorarem. É uma cultura de gratidão constante. As crianças agradecem pelo dia de vida e pela oportunidade de estudar, quando possível. Mesmo não falando a mesma língua, lá eles tem um dialeto local, o changana, as crianças em sua maioria são muito sociáveis, nos abraçam, nos beijam, brincam, se jogam mesmo. Mas existe uma particularidade realmente triste que vivi lá. Algumas crianças em aldeias mais distantes, que não tem muito acesso a estrangeiros (mulungos, como eles chamam), elas tem verdadeiro pavor de pessoas “brancas” e não é só pela diferença de cor, é porque infelizmente até pouco tempo atrás existia um número grande de roubo de crianças por estrangeiros para tráfico de órgãos. Então como a mãe fica a maior parte do dia fora e as crianças sozinhas, elas instruem os filhos a não se aproximarem de mulungos e fugirem caso algum apareça. Muito triste saber que ainda existem seres, não sei se humanos, que se prestam a roubar crianças africanas por julgarem que elas já não terão um bom futuro para ganharem dinheiros com suas vidas.

Educação: Quando julgamos que as crianças e adolescentes lá são pobres, necessitados não imaginamos que são, em sua maioria, muito inteligentes. Aprendem a falar changana, quando vão para escola aprendem o português e alguns casos o inglês. E como é lindo ver a fome de conhecimento que eles tem. As crianças e adolescentes se aproximam e tentam se comunicar, aprender novas palavras, gírias, gestos. Lá a educação é de difícil acesso, em especial nas aldeias que são muito distantes da cidade. Mas existem já algumas escolas construídas por projetos da FSF próximas a algumas aldeias e ainda algumas pessoas nativas são capacitadas pela FSF para darem reforço escolar para todas as crianças nas aldeias. As salas de aula são cadeiras colocadas embaixo de árvores e em alguns casos já existem construções mas não são em todas. E mais uma vez a disciplina é algo quase assustador, num lugar com mais cem crianças sentadas, não se vê elas levantando, fazendo bagunça, conversando. Todas interagem com a monitora.

Desenvolvimento: Nesse aspecto, eu quase delirava! Os bebês são criados em esteiras no chão, por isso desenvolvem o engatinhar e andar muito rápido. Os reflexos, equilíbrio, destreza são também desenvolvidos pela “lei da sobrevivência”, porque ficam muito no chão e precisam ou buscar comida, ou fugir de bicho, ou acompanhar as crianças mais velhas, elas literalmente se jogam nas experiências sensoriais e quando caem ou tropeçam, levantam-se rapidamente ou recebem auxílio de outra criança que está por perto. A fala e a interação também são estimuladas naturalmente pelos cantos diários das mulheres nas aldeias. Vi uma criança síndrome de Down e uma com retardo mental sem causa aparente e ambas muito inseridas em todas as atividades das aldeias, não existia nenhuma diferença quanto a elas.

Curiosidades: Lá não existe diferenciação de sexo para algumas coisas como por exemplo, levamos batom, esmalte, maquiagens e TODOS usaram sem nenhum tipo de constrangimento, meninos passaram esmalte, pintaram o rosto e se divertiram junto as meninas. Levamos bola de futebol e mais uma vez, todos se envolveram na brincadeira. Lá não existe brincadeiras de menino ou de menina, todos brincam de tudo.

As adolescentes lá já estão tomando consciência de que não querem a gravidez precoce, nem o casamento arranjado e precoce e fizeram músicas e danças para expressar isso! Um grande avanço, quando se trata de uma cultura em o homem pode ter até 5 mulheres e pode escolher qual e em qualquer idade.

Conheci a Associação Moçambicana de Autismo (AMA), lidera por uma pedagoga e mãe de um menino autista e mais uma vez me surpreendi com a garra desses pais pela busca de conhecimento e assistência para os seus filhos. Lá os médicos não sabem o que significa autismo, muito menos como auxiliar as crianças e famílias, é necessário ir para outro país (África do Sul) para ter o diagnóstico com apenas uma médica que conhece do assunto e que por isso cobra um valor muitas vezes impossível de ser pago pelas família moçambicanas. Lá existem alguns fonoaudiólogos (chamados de terapeuta da fala) e apenas um TO em Maputo (capital), então imaginem como é assistência as crianças. E quando fui buscar saber mais, soube que a formação desses profissionais é muito restrita quanto a desenvolvimento infantil e suas particularidades. Foi muito angustiante perceber como essas crianças e famílias estão sujeitas a uma assistência tão precária. Acreditam que uma criança autista que tem epilepsia associada, foi levada para outro país e submetida a tratamento com eletrochoque? Meu coração partiu e as lágrimas saltaram do meus olhos! E ela voltou completamente sequelada, pouco interativa e fadada a um futuro na cama (E as lágrimas continuam a correr com essa lembrança). Voltei com sede de auxiliar essas famílias e já começamos as nos movimentar para isso. Essa associação não tem nada a ver com a FSF, não existe nenhum vínculo entre elas, fui por conta própria nos dias que fiquei a mais em Maputo na casa de uma amiga. A FSF não tem braços para auxiliar a AMA, até porque é preciso matar a fome e dar educação a milhares de crianças nas aldeias. Mas caso alguém tenha alguma ideia, queria auxiliar de alguma forma a AMA também estamos abertos para isso.

Certamente, eu deixei de contar muitas coisas, mas não caberia aqui toda a vivência! Convido a todos que lerem essa matéria a entrarem no site da FSF e conhecerem mais dessa missão de amor em Moçambique, Malawi, Madagascar, Roraima, e outros projetos associados e tornarem-se padrinhos de algum deles e quem sabe se permitirem a também fazerem parte de uma caravana, é sem dúvida uma experiência impagável.

Preparei uma galeria de fotos para que tenham um pouco do gostinho do que foi essa viagem:

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